Série: Homem e Mulher os criou - parte 1 -
O Homem e a CriaçãoSermão pregado dia 18.03.2012
Em dias como os de hoje, é de se lamentar que precise ser feita uma exposição sobre o que é um homem e o que vem a ser uma mulher. Tristes momentos vivemos onde já não chama-se o recém nascido de menino ou menina, mas sim, apenas de "bebê", pois se diz que cabe à criança e a seu futuro o determinar qual linha sexual irá preferir e se adequar melhor. Já se foi o tempo em que os pais buscavam ser bons exemplos em casa; o homem como referência na liderança e provimento do lar e a mãe como fiel auxiliadora e mui importante ajudadora nas tarefas domésticas. No entanto, por outro lado, recebemos o "alento" de saber que desde os tempos bíblicos a sociedade corrompe-se e logo se enamora com filosofia pagãs, pois esse é o destino de todos os filhos da ira de Deus - homens e mulheres que desejam "viver suas vidas", pouco importando se estão ou não de acordo com a Lei do Senhor. É, portanto, dado a esse fato, que precisamos resgatar o entendimento bíblico sobre a criação e suas respectivas funções.
Não é sem motivo que nossas Bíblias começam com "No princípio criou Deus os céus e a terra" (Gn 1.1). Essa sentença precisa ecoar muito forte em nossos corações, pois não foi debalde que ali foi posta, mas assim foi feito porque Moisés estava a narrar o início de todas as coisas criadas por Deus e em Sua soberania e sabedoria aprouve nos legar sobre como todas as coisas foram criadas em seu estágio de nascimento. Por sabermos que toda a Escritura é inspirada por Deus (2 Tm 3.16,17), deveríamos nos dedicar ao entendimento do que o Senhor realizou e criou nos primórdios de Seus feitos. É correto estarmos cônscios de que não ao cabe ao homem perscrutar a vontade eterna e imutável do Deus transcendente, contudo, também não é bíblico nem seguro crer que a narrativa de Gênesis é apenas uma suposição de Moisés sobre como as coisas foram feitas, ou ainda, como desejam certos filósofos, que o gênero narrativo é de cunho exemplificativo, nada tendo em ligação com a realidade em si, como se homem, mulher, animais, jardim e pecado fossem concepções abstratas, do qual depende da vontade humana o "desvendar" dos mistérios inseridos nessas figuras.
A palavra de Deus nos revela que o homem foi criado apenas no último dia da criação. "E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança... e foi a tarde e a manhã, o dia sexto" (Gn 1.26, 31). Mas por quê? Muitos gnósticos [1] poderiam argumentar que o motivo se deve ao fato da matéria ser má, daí Deus não desejar criá-lo por primeiro, e sim por último, mostrando que deve ser banalizado. Alguns pensadores "alternativos", quem sabe explicariam que tudo se deu para mostrar ao homem que, embora tenha sido feito no final do ciclo da criação, o intuito do Senhor era para mostrar que um ele deveria se erguer e buscar ser maior do que a natureza anteriormente criada, haja vista o Senhor ter lhe dado a ordem de subjugá-la. No entanto, não é isso que a Bíblia nos ensina.
Para entendermos esse ponto, é preciso que tenhamos em mente que Deus criou tudo conforme Seu bem querer eterno e decretado até mesmo antes da fundação do universo. Nada, absolutamente nada saiu (e sai!) fora do controle divino ou foi criado aquém do intento do Artífice da criação. A soberania plena de Deus também nos ensina que Ele não somente criou o tudo o que veio à lume por Suas mãos, mas que também tudo sub-existe n'Ele mesmo e para Ele - "Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente" (Rm 11.36).
Se tudo foi veio por meio do Senhor, deduz-se claramente que todas as coisas foram criadas visando o bem de Suas criaturas, não sendo sequer qualquer vegetal ou animal um elemento inútil na criação. Até a mais ínfima partícula de pólen das flores ou o maior dos animais selvagens, todos, sem exceção tinham um propósito único e definido pelo Senhor. Eis, então, a nossa resposta: Deus criou o homem somente após prover-lhe todo sustento necessário para sua existência, levando-o a considerar Sua bondade e providência para com ele - "Considera, pois, a bondade... de Deus" (Rm 11.22).
Toda luz, noite, luminares, águas, terras, ervas, plantas e animais que o Senhor criou, foram feitos para o louvor da Sua glória, pois o Senhor não precisa de coisa alguma que acresça à Sua auto existência, sendo a consequência de que tudo o que faz redunda em glórias ao Seu nome. No entanto, não obstante tal condição que Lhe assiste, o Eterno teve por bem prover ao homem os melhores e mais adequados meios para sua orientação, guarida e sustento. Aprouve ao homem ser agraciado pelas bênçãos sem medida vindas das mãos graciosas do Senhor que a tudo sustém e controla. Aqui, porém, precisamos notar que a criação é o meio pelo qual o Senhor sustenta e cuida de Seus filhos, no entanto, não é apenas o único.
A narrativa bíblica nos diz que o primeiro ato do Senhor foi criar a luz e fazer a separação entre as trevas e ela (Gn 1.3), e é somente mais adiante é que somos informados que Ele veio a criar os luminares (Gn 1.14). Nesse ponto reside grande dúvida dos cientistas e teólogos curiosos, pois perguntam-se como pode ter sido possível as plantas e ervas sobreviveram sem a luz do sol, visto que ele foi criado posteriormente a ela? Se indagam e se digladeiam entre si sobre qual a explicação para tal fenômeno: se houve erro na tradução bíblica, onde o correto seria primeiro listar o sol, depois a luz e por fim as ervas, ou se Moisés estava a falar apenas de tempos ou eras de criação, não tendo o relato bíblico o intuito de ser literal... Contudo, penso que ambos estão errados.
Calvino nos explica magistralmente o porquê da das plantas existirem antes do sol: "Mas o Senhor, para que a si reivindicasse o pleno louvor de tudo isso, não só quis que, antes que criasse o sol, existisse a luz; mais ainda: que a terra fosse repleta de toda espécie de ervas e frutos (Gn 1.3, 11, 14). Portanto, o homem piedoso não fará do sol a causa quer principal ou necessária destas coisas que existiram antes da criação do sol, mas apenas o instrumento de que Deus se serve, porque assim o quer, já que pode, deixado este lado, agir por si mesmo com nenhuma dificuldade". [2]
O reformador é cirúrgico em nos dar um vislumbre da Soberania de Deus em face de Sua providência, pois ainda que Deus tenha feito vir a existir todas as coisas para Seu próprio deleite e também cuidado e preservação do homem que criara, o intento do Criador não era de legar ao homem uma vã esperança nos elementos criados, ou ainda, um senso de amor pela "mãe natureza" como se ela se auto gerisse e buscasse por si mesma cuidar do homem que estava a seu dispor. O intento do Senhor ao inspirar Moisés no registro era para que o homem compreendesse que, ainda que toda criação esteja a seu dispor, ele não deve ter um apego maior do que o intentado pelo Senhor; daí o Soberano já prover um meio de ensinar ao homem tal lição, isto é, que Ele pode sustentar tudo debaixo da terra mesmo sem um dos elementos principais de nossas vidas: o sol e sua força revigorante. [3]
Em Gn 1.26 lemos que o Deus trino formou o homem à sua imagem e semelhança - mas o que viria a ser isso? "Nem mais veementemente contenderei, caso alguém insista que sob o conceito de imagem de Deus deve-se levar em conta que 'os outros animais, enquanto se inclinam para baixo, o solo contemplam, ao homem se deu um semblante voltado para cima e determinado a contemplar o céu e as estrelas, erguendo seu vulto ereto', contanto que isto fique estabelecido: que a imagem de Deus, que se percebe ou esplende nestas marcas exteriores, é espiritual... à semelhança, como se estivesse a dizer que iria fazer um homem no qual, mediante marcas impressas de semelhança, haveria de representar-se a si próprio como numa imagem. Por isso, referindo o mesmo pouco depois, Moisés repete duas vezes a frase imagem de Deus, omitindo a menção da semelhança... Com esta expressão se denota a integridade de que Adão foi dotado, quando era possuído de reto entendimento, tinha afeições ajustadas à razão, todos os sentidos afinados em reta disposição e, mercê de tão exímios dotes, verdadeiramente refletia a excelência de seu Artífice... Nem em vão, porém, ressalta Moisés, mediante este designativo peculiar, imagem e/ou semelhança, a graça de Deus para conosco, especialmente quando o homem é comparado apenas às criaturas visíveis". [4]
Quando o Senhor se pôs a criar o homem, colocou em seu espírito Sua imagem e semelhança. Mas como bem ditou o reformador, não devemos entender imagem e semelhança como sendo duas coisas distintas, mas apenas duas formas de se dizer o mesmo intento, pois isso é mais do que comum na literatura hebraica. [5] Também não podemos imaginar que imagem e semelhança digam respeito ao seu caráter corpóreo, pois a própria Bíblia nos ensina que Deus é espírito (Jo 4.24), da onde podemos seguramente concluir, na expressão de Calvino, que tais menções a mãos, braços, amor, paixão e quaisquer outros elementos físicos e humanos, nada mais são do que "antropomorfismos pedagógicos", ou seja, Deus utilizando-se da linguagem humana para nos ensinar. A imagem e semelhança de Deus no homem diziam respeito ao seu reto juízo e entendimento adequado das situações.
A narrativa de Gn 2 nos conta que enquanto o Senhor estava a criar toda a natureza, também fez um belo e magnífico jardim que estava repleto das mais doces e exuberantes árvores, sendo aquele lugar certamente muito mais esplendoroso do que tudo que podemos imaginar. Certamente que até mesmo a menor das árvores era adornada pelos cristais do céu, os rios que o cortavam refletiam a beleza encantadora da criação e os pássaros não somente voavam, mas entoavam canções de louvor ao Senhor (Sl 150.6). Tudo que saltava aos olhos de Adão lhe era agradável; absolutamente coisa alguma havia onde se pudesse apontar algum efeito. Cada pedaço de terra recebia a porção exata de chuva e sol vindas dos céus, as plantas não produziam seu veneno, os animais não cobiçavam uns aos outros, nem o homem os matava para sobreviver. [6] Se pudéssemos projetar algo para competir com tão belo jardim, nosso projeto final assemelhar-se-ia àquela dos países após serem arrasados pelas guerras mundiais. Sem sombra de dúvidas que o Éden era o mais belo lugar para o Senhor colocar o homem.
Mas, apesar de toda beleza e grandiosidade que se faziam presentes naquele jardim, O Senhor também havia plantado a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.9). As Escrituras não nos revelam como seria essa árvore, seu tamanho, forma ou cor, por isso devemos evitar toda superstição e curiosidade excessiva; no entanto, ela é mais do que enfática em dizer que, apesar de sua formosura, tal não deveria ser alvo do desejo de Adão; por isso lhe foi dito: "E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (Gn 2.16-17).
Tendo então feito o homem e colocado no Éden, o Senhor disse: "E tomou o SENHOR Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar" (Gn 2.15 - grifo meu) - mandamento esse também expresso anteriormente: "domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra" (Gn 1.26). Qualquer que seja a tradução bíblica que utilizarmos (desde que com um mínimo de prestígio ao texto bíblico nas línguas originais), todas trarão o verbo "dominar" ou "reinar" no imperativo. A palavra do Senhor ao criar o ser humano foi: domine, lavre e guarde (cuide) o jardim, a responsabilidade é sua - e foi isso que Adão começou a fazer logo que lhe foi levado os animais para que lhes desse o respectivo nome (Gn 2.19). Aqui se percebe de modo notável e esplendido a imagem e semelhança infundida no homem, pois qual criatura após a queda, pois mais dotada que fosse, poderia ter tamanha criatividade para nomear todos os animais que lhe fossem apresentados? Qual criatura teria tamanha perspicácia a ponto de escolher nomes perfeitos e adequados segundo cada espécie? Assim, por ainda estar em seu reto e pleno juízo, Adão foi capaz de nomear cada um deles, desde os maiores até os menores. Embora Adão tenha nomeado todos os animais, seu dever de lavrar e cuidar a terra ainda permanecia vigente, devendo (e podendo!) cuidar de toda criação que Deus colocou ao seu dispor.
É nesse ínterim da criação do mundo e do homem que encontramos o primeiro pacto de Deus com o homem: o pacto das obras. O Senhor havia disposto tudo de forma bela e constante ao homem, de modo que ele tão somente deveria reger a criação e ter o cuidado para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Adão tinha então um pacto, uma aliança firmada com Deus: obedecendo à Sua ordem, tudo lhe iria bem; desobedecendo, certamente morria. [7] Adão tinha diante de si a promessa da vida eterna ao lado do Senhor que o(s) visitava no jardim (Gn 3.8) e a tudo lhe provia, sendo ele testemunha viva e ocular de que não havia nada maligno ou inacabado no palácio natural onde habitava - todos os seus sentidos lhe diziam que tudo era muito respeitável e agradável, nada lhe faltava. Mas ele também tinha sobre sua cabeça o decreto de que se houvesse a faltar com o Senhor em sua obediência, não haveria dó, piedade ou clemência que pudessem fazer com que a misericórdia, imagem e semelhança continuassem a pairar sobre seu coração.
Diferentemente de nós, para Adão era possível obedecer ao Senhor e cumprir o pacto feito por Ele, pois como vimos, em Adão não habitava o pecado, nem era ele coagido a fazer coisas más, pois era à imagem e semelhança de Deus. Como também disse Calvino, "Com efeito, Adão recebera o poder, se quisesse; não teve, entretanto, o querer, por meio do qual pudesse, porque a perseverança acompanharia este querer. Todavia, não tem escusas quem recebeu tanto que, por seu próprio arbítrio, a si engendrasse a ruína". [8] Aqui, a teologia reformada faz amplo coro as palavras do reformador, contudo, em nenhum momento afirmamos (nem Calvino o faz - vide sua obra completa) que tal liberdade de Adão estava fora do decreto divino. Deus, por algum insondável propósito, havia decretado a queda, pois assim lemos: "E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo" (Ap 13.8 - grifo meu). Em seu conselho (vontade) secreto, Deus havia ordenado a Adão que caísse, contudo, também havia-o alertado para que assim não procedesse. Nos é útil estender apenas um pouco e citar novamente o reformador:
"Contudo, nem por isso Deus se põe em conflito consigo mesmo, nem se muda sua vontade, nem o que quer finge não querer; todavia, embora nele sua vontade seja uma só e indivisa, a nós parece múltipla, já que, em razão da obtusidade de nossa mente, não aprendemos como, de maneira diversa, o mesmo não queira e queira que aconteça. Paulo, onde disse que a vocação dos gentios era 'um mistério escondido' [Ef 3.9], acrescenta, pouco depois [Ef 3.10], que nela manifestara a [multifária] sabedoria de Deus. Porventura porque, em decorrência da lerdeza de nosso entendimento, a sabedoria de Deus se afigura múltipla, ou, como a verteu o tradutor antigo, multiforme, deveríamos nós, por isso, sonhar no próprio Deus qualquer variação como se mudasse de plano ou divergisse de si mesmo? Antes, quando não apreendemos como Deus queira que se faça o que proíbe fazer, venha-nos à lembrança nossa obtusidade, e ao mesmo tempo consideremos que a luz em que ele habita não em vão se chama inacessível [1 Tm 6.16]... Aliás, pouco antes Agostinho havia dito que, por sua revolta, os anjos apóstatas, e todos os réprobos, quanto respeita a si próprios, haviam feito o que Deus não queria; quanto, porém, respeita à onipotência de Deus, isto de modo algum teriam podido fazer, porque, enquanto o fazem contra a vontade de Deus, lhe é feita a vontade no que a eles se refere. Donde exclama: 'Grandes são as obras de Deus, excelentes em todas as suas vontades [Sl 111.2]; e assim, de maneira mirífica e inefável, não se faça, exceto por sua vontade, o que se faz mesmo contra sua vontade, porque não se faria se ele não o permitisse; nem o permite, como se de qualquer forma não o quisesse; ao contrário, porque o quer; mesmo sendo bom não permitiria que mal se fizesse, exceto que, onipotente, até em relação ao mal pudesse fazer bem'". [9]
Convém, portanto, agora pararmos por aqui, a fim de não darmos lugar à curiosidade demasiada e nem intentar conhecer a vontade secreta do Senhor. Fiquemos satisfeitos com aquilo que o Senhor tem revelado e demonstremos humilde submissão aos decretos de Deus, pois apenas isso tem de ficar firme: Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus e foi colocado no mais belo e proveitoso lugar que o Senhor arquitetou.
Notas:
[1] Heresia predominante durante os primeiros séculos da Igreja pós apostólica que afirmava ser o corpo, a matéria humana inerentemente má, ao passo que o espírito era bom; por isso lutavam para mortificar o corpo físico e lhe privar de qualquer prazer, tudo na esperança de que o espírito "bom" sobrepujasse a maldade corpórea.
[2] CALVINO, João, As Institutas, Ed. Clássica, Livro I, Cap. XVI, pág. 194.
[3] Os benefícios do sol são inúmeros: desde a fotossíntese das plantas, até o prevenir de doenças como osteoporose.
[4] CALVINO, Ibid., págs. 182-184.
[5] Para mais, veja o capítulo XV do Livro I das Institutas.
[6] A condição de carnívoros, isto é, matar outro animal para se alimentar, é fruto da queda do homem (compare Gn 2.9,16 com Gn 9.3)
[7] Não cabe ao escopo do presente trabalho o analisar a liberdade de Adão. Devemos ter em mente que Adão achava-se em reto e pleno juízo, podendo realizar perfeitamente o que o Senhor lhe dirigira.
[8] CALVINO, Ibid., pág. 191.
[9] CALVINO, Ibid., pág 228, 229.