quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Culpa não é minha - João Calvino


A Culpa não é minha -
por João Calvino

A mente assim temperada para a reverência e a humildade não murmurará contra Deus por causa das calamidades que sobrevieram à humanidade em tempos passados; nem culpará a Deus por crimes que o homem cometeu, dizendo com Agamemnom na llíada:

"A culpa não é minha;

Os culpados são o Céu e o Destino."

O homem humilde de coração preferirá buscar a vontade de Deus, e cumpri-la mediante a ajuda do Seu Espírito.

Quanto aos eventos ainda futuros, aprendemos com Salomão que os propósitos do homem operam em harmonia com a providência de Deus; "O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos" (Prov. 16:9]. Estas palavras ensinam que os decretos eternos de Deus não nos impedem, de modo algum, de exercer providência por nós mesmos e de dispor todos os nossos negócios em sujeição à Sua vontade.

E isto não deixa de ser razoável. Pois Aquele que colocou limites à nossa vida também nos comissionou a cuidar dela, nos forneceu modos e maneiras de preservá-la, nos deu poder para prever perigos e nos ensinou a aplicar precauções e remédios. Nosso dever, portanto, é claro. Se Deus entregou a nós o cuidado da nossa própria vida, devemos zelar por ela; se fornece meios, devemos usá-los; se nos adverte de antemão dos perigos, não devemos temerariamente correr ao encontro deles; se fornece remédios, não devemos negligenciá-los.

Há homens que tiram conclusões falsas e temerárias após considerarem isoladamente a doutrina dos propósitos providenciais de Deus. Argumentam: "Por que um ladrão deve ser castigado, se despojou um homem que Deus determinou afligir com pobreza? Por que um assassino deve ser punido, se matou um homem cuja vida atingiu o limite determinado pelo Senhor? Se todos estes agentes estão sujeitos à vontade de Deus, por que devem ser castigados?" Mas nego que os criminosos estejam "sujeitos à vontade de Deus". Estão sujeitos às suas próprias concupiscências malignas.[1]

O coração do cristão, estando totalmente convicto de que todas as coisas estão sujeitas à ordenação de Deus, e de que nada acontece por acaso, sempre olhará em primeiro lugar para Ele; mas dará às causas secundárias seu lugar apropriado. Quanto aos homens, quer bons, quer maus, o cristão reconhecerá que seus planos, desejos, tentativas e poderes estão sujeitos ao controle do Senhor, e que Ele pode virá-los para onde Ele quiser, e frustrá-los quantas vezes quiser. Há muitas promessas que testificam muito claramente que a providência de Deus sempre cuida vigilantemente da segurança dos crentes; talvez baste citar os seguintes: "Confia os teus cuidados ao Senhor, e ele te susterá; jamais permitirá que o justo seja abalado (Sal. 55:22). "Ele tem cuidado de vós" (1 Ped. 5:7). "O que habita no esconderijo do Altíssimo, descansará à sombra do Onipoente." (Sal. 91:1). "Aquele que tocar em vós toca na menina do meu olho" (Zac. 2:8). "Acaso pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti." (Is. 49:15).

E assim, Cristo depois de asseverar que nem sequer um insignificante pardalzinho cai por terra sem nosso Pai consentir, diz-nos que temos mais valor do que muitos pardais, e que Deus, portanto, dispensa cuidados mais abundantes sobre nós, e que devemos descansar-nos na certeza de que os cabelos da nossa cabeça estão todos contados.

Além disso, as Escrituras testificam que todos os homens estão sob o poder de Deus, e que Ele pode ou torná-los bem dispostos para com Sua igreja ou evitar que sua malícia tome efeito. Ele deu aos israelitas graça aos olhos dos egípcios. Derrotou o conselho de Aitofel quando este ameaçava destruir a Davi. O diabo nada podia fazer contra Jó sem a permissão divina.

O conhecimento de tais verdades como estas nos torna gratos na prosperidade, pacientes na adversidade e maravilhosamente confiantes da nossa segurança futura. Em chegando a prosperidade, atribuímo-la à bondade de Deus, quer chegando a nós através da agência dos homens, quer através de outros canais. Quando os homens nos mostram bondade, consideramos que Deus inclinou seus corações para ajudar-nos; e quando temos colheitas abundantes, percebemos que Deus respondeu aos céus, os céus responderam à terra, e a terra respondeu ao seu produto (Os. 2:21-22).

Quando a adversidade nos sobrevém, erguemos nossos pensamentos a Deus, e o saber que Sua mão a enviou, torna-a mais eficaz para produzir a paciência, a submissão e a tranqüilidade da mente. Se José tivesse deixado que seus pensamentos permanecessem fixos na traição dos seus irmãos, nunca poderia ter reavido sua afeição por eles; mas quando considerou a providência de Deus, esqueceu-se o dano que lhe tinham feito, e disse: "Vós, na verdade intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. Não temais pois; e vos sustentarei a vós outros e a vossos filhos" (Gen. 45:8 e 50:19-21).

Mas embora a vontade de Deus seja a grande causa primária, assim como está escrito: "Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz, e crio o mal; eu o Senhor, faço todas estas coisas" (Is. 45:7), nenhum homem piedoso fechará seus olhos às causas secundárias.

Na realidade, considerará um homem que lhe faz um ato de bondade como um agente utilizado pela bondade de Deus; mas também sentirá de todo o coração que está endividado para com o agente, e esforçar-se-á para demonstrar sua gratidão de modo apropriado e dentro das suas possibilidades. Se sofrer perda mediante sua própria negligência ou descuido, culpará a si mesmo, embora reconheça nisto a mão de Deus. Se alguém que foi entregue aos seus cuidados morrer devido doença, por causa da sua negligência, considerar-se-á culpado, embora saiba que a duração da vida é fixada pela determinação de Deus. Não fará abuso da doutrina da providência de Deus para apresentar desculpas por nenhum pecado.

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