Sermão pregado dia 10.06.2012
A narrativa descrita no Éden nos tem mostrado o quão belo e glorioso era o mundo que Deus havia criado. Cada parte correspondia ao exato desígnio do Mestre, as plantas floresciam com grande esplendor e beleza, os rios forneciam constante água límpida e pronta para o uso, as árvores de todo tipo eram magníficas e muitíssimas davam seus frutos para o deleite das criaturas feitas pelo Senhor. Homem e mulher, cada qual com seu papel, eram firmemente cônscios de seus deveres, de modo que amavelmente o homem guiava sua esposa e ela, por sua vez, se submetia ao seu reinado. Absolutamente tudo era imaculado e não havia sequer uma aparição de trevas ou algo não agradável aos olhos da criação. No entanto, como vimos, homem e mulher desobedeceram e caíram – "e foi grande a sua queda" (Mt 7.27).
Como já apontado anteriormente, a queda de nossos primeiros pais estava dentro da soberania divina, de modo que o Senhor não foi surpreendido pela atitude humana, pois tudo estava dentro de Seu decreto. Portanto, vejamos de maneira breve o evento subsequente à queda: Gn 3.7-20.
As Escrituras nos relatam que o primeiro ato após a queda do casal, foi a visualização de sua nudez: "Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais" (Gn 3.7). Nos é clarividente a narrativa, de forma que de imediato entendemos que antes da queda não havia sensibilidade para com a falta de vestes, isto é, homem e mulher não tinham vergonha de seus corpos, não havia verdadeira nudez, pois ainda a completa imagem e semelhança do Senhor estava em seus corpos. Uma vez tendo caídos do estado glorioso, passaram a visualizar sobre própria nudez - tanto de um para com o outro como para o Senhor. A queda de Adão e Eva nos revela que o pecado nos desnuda diante do Altíssimo, nos expõe perante Deus e nos faz conscientes de quão indignos e desprovidos de qualquer bem inerente somos.
O presente versículo também nos exorta sobre o quão "natural" é para o homem caído e embrenhado no pecado o tentar consertar por si mesmo a situação. Note que "e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais", mas, posteriormente "fez o SENHOR Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu" (Gn 3.21). [1] O Senhor não se agradou e ainda hoje não se agrada de nossos feitos em prol da remediação do pecado, pois ainda que pudéssemos coser os mais belos e perfeitos aventais que um ser humano pudesse confeccionar, ainda assim, diante do Senhor, não estaríamos completamente e decentemente cobertos, afinal, uma vez tendo pecado e transgredido o mandamento do Artífice, somente Ele é quem pode nos libertar da malignidade e vileza em que nos encontramos, de modo que toda obra de nossas mãos nada mais são do que vis cavilações e subterfúgios inúteis com finalidade de nos justificar ante ao Senhor.
Após a visualização de sua nudez e a tentativa frustrada de consertarem sua exposição diante de Deus, "ouviram a voz do SENHOR Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do SENHOR Deus, entre as árvores do jardim" (Gn 3.8). Agora já não mais havia paz entre o casal e o seu criador. O Senhor que estava junto deles em momentos anteriores à queda [2], agora é visto como um estranho, um intruso, alguém que não é bem-vindo, como se de Criador e Sustentador, passasse a ser usurpador e salteador. O modo de viver anterior a queda era belo, formoso e singelo, ao passo que após a queda, já não mais observavam o Senhor de forma gloriosa - Ele passou-lhes a ser um ente estranho, alguém cuja presença já não era adorável, mas tão somente temível por causa de seus pecados e afrontas mortais.
Observemos como o pecado desgraçou a inocência da consciência. Se anteriormente podiam livremente andar nus diante do Eterno - representando assim [também] a contínua dependência que tinham do Senhor e a insuficiência em si mesmos -, agora, apenas o ouvir da voz do Senhor em meio à criação já era motivo para alarme, desconfiança e medo: "E chamou o SENHOR Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me" (Gn 3.9-10). Assim como as crianças se escondem de seus pais após o desobedecerem conscientemente, também nos parece que tal atitude se deu com Adão e Eva. A voz do Senhor havia deixado de lhes ser graciosa, já não tinham mais prazer na beleza da santidade (Sl 96.9) do Alto; pelo contrário, sequer conseguiam entender quem era o Senhor.
A ênfase que Moisés destaca também é importante, pois não apenas Adão temeu ao Senhor, mas também tentou se refugiar em meio a natureza. Contudo, notemos que atitude errônea foi essa e completamente desprovida de sensibilidade divina, afinal, como Jó afirmou - "Porque ele vê as extremidades da terra; e vê tudo o que há debaixo dos céus" (Jó 28.24) -, de que forma seria possível ao homem o esconder-se na própria criação do Senhor soberano? O esconder-se do Senhor nos revela também a vontade natural do homem - o tentar afastar-se para o mais distante que conseguir da presença Eterna. Porém, o Senhor bem sabia para onde Adão havia ido e o que havia feito. Como que nunca pergunta soberanamente cônscia da resposta, o Senhor diz: "Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?" (Gn 3.11). Deus não desejava saber a resposta, pois uma vez que reside nele toda soberania e controle da criação, não havia - e não há - coisa alguma que lhe fugisse à vista. A pergunta, portanto, visava apenas a incriminação do homem e sua insuficiência em responder.
Aqui, então, começamos a notar outro ponto crítico da Queda: o não reconhecer dos próprios erros (Sl 19.12) e passar a culpa adiante. "Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi" (Gn 3.12). Ao contrário do que lhe havia sido incumbido, por ocasião do pecado, Adão não compreende o seu papel na Queda, não compreende que ele também havia caído e maculado a glória do Senhor em seu ser, não percebera em quão lamentável situação se encontrava - preferia se achar digno de alguma clemência e por isso apontou o culpado: "A mulher que me deste por companheira". Da mesma forma se passa com a mulher: "E disse o SENHOR Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi" (Gn 3.13). Não bastasse o homem haver negligenciado seu dever, agora a mulher também se escusa da responsabilidade e aponta a razão de sua queda: "[a] serpente me enganou". Mas, diferente do homem e da mulher, à serpente não foi dada autorização para falar - a ela restava apenas a condenação.
No entanto, que não nos passe despercebido o seguinte detalhe: embora tenham tentado se esquivar da responsabilidade, tinham consciência de que eram transgressores e pecadores, pois ambos disseram "e comi" (vs. 12-13). Adão e Eva sabiam que haviam violado a ordenança do Senhor e que estavam aliados à serpente, eram cientes de que foram descumpridores do pacto de obras, entretanto, ainda assim buscaram apontar um culpado, como que não aceitando o fato de haverem falhado. Fazemos então a brevíssima reflexão: não é isso que ainda hoje costumamos fazer? Não é dessa exata maneira que muitas vezes se dá o nosso proceder? Visualizamos a chance de pecar, pecamos, passamos o pecado adiante, mas dizemos resolutamente: "A culpa não e minha! A tentação foi maior que do eu podia suportar!". Quando assim procedemos, violamos o ensinamento divino que afirma: "o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar" (Gn 4.7).
Importa-nos, então, observarmos a primeira condenação que o Senhor profere: "Então o SENHOR Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida" (Gn 3.14). Até o presente momento da narrativa não havia sido proclamada nenhuma maldição da parte do Senhor. Apesar de já terem cometido pecado, o Eterno ainda não havia lhes castigado diretamente e proferido as duras e penosas consequências da Queda.
Ao contrário do que pode nos parecer justo, o Senhor não imputada sobre Adão ou Eva a maldição primeira, mas sim castiga o estopim do pecado, a saber, a serpente perversa. O castigo recaiu sobre a serpente como animal, mas também como representante do Diabo que era (Ap 20.2). Porém, não somente o animal rastejador foi atingido pelo decreto irado do Senhor, e sim todo o restante dos animais. Se anteriormente o homem e mulher deveriam apenas se alimentar das árvores frutíferas (Gn 2.16), após a queda "Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde" (Gn 9.3) - o ato de se matar a criação (os animais, seres com vida) é fruto do pecado. Agora, já não mais havia paz entre os animais e os seres humanos; se iniciava uma cadeia alimentar onde o mais forte venceria o mais fraco - não haveria piedade ou misericórdia sobre a face da terra.
O Senhor prossegue: "E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3.15). [3] Apesar de anteriormente a serpente haver prometido que a mulher seria como Deus - e consequentemente se igualaria ao Seu ser -, nada disso aconteceu; na verdade, não somente ficou sem a promessa da serpente, mas também passou a ter a própria serpente como um inimigo diário. A Bíblia não nos releva se a ocasião da queda foi a primeira vez em que a serpente havia se aparecido aos seres humanos, porém, independente disso, antes da queda a serpente não feria o calcanhar da mulher. Portanto, o Senhor sentencia que uma vez embrenhados em meio ao pecado, constantemente a serpente castigaria a criação de Deus, de modo que se não houvesse um libertador (louvado seja o Senhor!), o fim da vida humana já estaria decretado: a morte e tormento eterno - a picada mortífera da víbora.
Tal qual como um juiz togado, o Senhor continua sua sentença condenatória: "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará" (Gn 3.16). Ainda que muitos tentem desvirtuar o ensino bíblico e sejam como vozes da própria serpente enganadora, a firme, reta e sempre soberana Palavra do Senhor nos afirma que, se anteriormente à queda a mulher era uma ajudadora idônea (Gn 2.18), agora sua idoneidade havia findado, lhe restando somente dores, tanto na concepção dos filhos, como no obedecer ao marido. Desse ponto em diante, a mulher já não está mais obrigada por amor à obediência marital, e sim por imposição, isto é, deve obedecer ao marido, sendo isso agradável ou não - "ele te dominará". [4]
Agora, o Senhor chama o terceiro réu e profere: "E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida" (Gn 3.17). A primeira parte da condenação diz respeito a um gravíssimo erro que Adão havia cometido: "Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher". Adão, como líder e responsável por sua casa, não deveria dar ouvidos a sua mulher. [5] Lhe havia sido dado o dever de lavrar, cuidar da terra e, por implicação, obedecer somente ao Senhor e seus desígnios. [6] A segunda parte da condenação é com respeito a sua atitude para com o Criador: "e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela". Em lugar da obediência e reverência devida, Adão resolveu ir além e mover as linhas limítrofes estabelecidas pelo Senhor. Mesmo sendo cônscio de seu dever de não comer da árvore proibida, ultrajou o mandamento do Senhor e desejou ser dono de suas próprias escolhas. Porém, há ainda uma terceira parte: "maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida".
Ainda que em alguns milhares de anos posteriores a queda, o apóstolo ainda expressa essa realidade: "Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora" (Rm 8.22). Por causa do pecado de Adão, maldita se tornou toda a terra - tudo, absolutamente todas as coisas seriam obtidas "com dor" e dificuldades. Da maravilhosa presença do Senhor, do mais belo Jardim que se podia encontrar e do sustento diário provido bondosamente pelo Senhor (pois a terra dava seu fruto no tempo certo, as sementes germinavam sem falta, as águas fluíam no curso correto), o homem passa a ter sobre si a dor, quem sabe, de um modo geral, seja a mais terrível e temida sensação que alguém pode experimentar, tipificando assim a grandiosa malignidade em que haviam incorrido. Entretanto, para que o homem não pensasse que porventura apenas o sustento lhe seria dificultoso, o Senhor ainda lhe diz: "Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás" (Gn 3.18-19). A terra já não seria frutífera como outrora - haveriam pragas por toda ela.
Observemos mais um detalhe salutar: anteriormente havia sido dito: "E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida... E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente" (Gn 2.9). A provisão para o homem vinha diretamente da própria natureza criada pelo Senhor. As árvores já estavam postas e davam toda sorte de frutos, de modo que o homem e a mulher retiravam seu sustento diretamente da criação providencial. Parece-nos que as Escrituras estão a nos informar sobre que Adão não necessitaria incrementar elementos e benfeitorias humanas a terra, pois a própria natureza do Senhor lhe proveria todos os nutrientes e formas adequadas de sustenta. Todavia, agora o veredito é outro: "e comerás a erva do campo". Tal qual o animal que tem de se dobrar ao chão para obter alimento e tem de se esforçar grandemente para achar comida, assim também estaria o homem diante da terra. Já não mais apanharia das frutas gloriosas dadas pelo Senhor, pois teria de comer da erva do campo. E não bastasse toda essa infelicidade e terrível maldição, como vimos, ainda teria de comer da erva do campo em meio a "Espinhos, e cardos" - No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra. A razão para toda essa maldição era clara: "porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás". Para que o homem não se gloriasse perante o Senhor e não aviltasse a divindade outra vez, o Senhor lhe sentencia que assim como do pó havia sido formado, agora também ao pó voltaria e veria a morte - "Porque eu sei que me levarás à morte e à casa do ajuntamento determinada a todos os viventes" (Jó 30.23).
Por fim, lemos: "E chamou Adão o nome de sua mulher Eva; porquanto era a mãe de todos os viventes" (Gn 3.20). Moisés não nos fornece maiores explicações do porquê desse ato de Adão, mas, conforme pensaram certos homens piedosos [7], pode-se conjecturar que por o nome de Adão significar "[da] terra vermelha" e Eva ter o sentido de "vida", por uma perspectiva futura, talvez Adão tenha dado tal nome a sua esposa por haver recebido a sentença da morte e então cria que apesar dela (a morte), poderia em Eva encontrar a vida para sua posterioridade - filhos. Já em uma perspectiva pretérita, pode Adão ter crido que por a Eva ter sido dada a promessa de que sua posterioridade haveria de esmagar a cabeça da serpente (Gn 3.15), tenha ele dado tal nome devido à semente que dela descenderia, significando que a tomava como parte integrante de seu ser e que era esperançoso de que tal promessa se cumprisse. De qualquer modo, nos parece que como num ato de consolação, dá a sua mulher um nome que denota "vida", tendo, então, certo alento próprio e/ou matrimonial, apesar da sentença de morte já estar sobre si.
Para a tristeza, choro e lamentação de todo ser vivente, a maldição do Senhor estava findada - homem e mulher tiveram a imagem e semelhança de Deus manchada em seus seres e, desse ponto diante, não fosse a misericórdia e graça do Alto, estariam fadados à ruína eterna.
Notas:
[1] Veremos esse ponto mais detidamente quando comentarmos sobre a modéstia e decência no se vestir.
[2] A narrativa bíblica nos parece fornecer a impressão de que houve, durante algo tempo (que não podemos precisar a quantidade), a perfeição no Jardim - daí o relato da Queda ser posterior a esse tempo e não imediatamente a colocação de ambos no Éden.
[3] Posteriormente analisaremos como Jesus Cristo está inserido nesse contexto e versículo.
[4] Não se deve interpretar equivocadamente tal maldição. Para tal entendimento de acordo com a Palavra, leia novamente o estudo 7 e 8.
[5] O Senhor não condena Adão porque simplesmente ouviu sua mulher, afinal, certamente que eles conversavam e, como ajudadora que era, Eva certamente tinha papel deveras importante na relação, mas sim o condena em face do pecado de dar ouvidos à mulher, em vez de atentar para o Senhor.
[6] Para uma explanação mais detalhada sobre esse fato, ver o capítulo 11 do livro "Vivendo Para a Glória de Deus, Uma Introdução à Fé Reformada", Ed. FIEL - do autor Dr. Joel R. Beeke.
[7] Vide comentários de João Calvino e Matthew Henry.
Como já apontado anteriormente, a queda de nossos primeiros pais estava dentro da soberania divina, de modo que o Senhor não foi surpreendido pela atitude humana, pois tudo estava dentro de Seu decreto. Portanto, vejamos de maneira breve o evento subsequente à queda: Gn 3.7-20.
As Escrituras nos relatam que o primeiro ato após a queda do casal, foi a visualização de sua nudez: "Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais" (Gn 3.7). Nos é clarividente a narrativa, de forma que de imediato entendemos que antes da queda não havia sensibilidade para com a falta de vestes, isto é, homem e mulher não tinham vergonha de seus corpos, não havia verdadeira nudez, pois ainda a completa imagem e semelhança do Senhor estava em seus corpos. Uma vez tendo caídos do estado glorioso, passaram a visualizar sobre própria nudez - tanto de um para com o outro como para o Senhor. A queda de Adão e Eva nos revela que o pecado nos desnuda diante do Altíssimo, nos expõe perante Deus e nos faz conscientes de quão indignos e desprovidos de qualquer bem inerente somos.
O presente versículo também nos exorta sobre o quão "natural" é para o homem caído e embrenhado no pecado o tentar consertar por si mesmo a situação. Note que "e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais", mas, posteriormente "fez o SENHOR Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu" (Gn 3.21). [1] O Senhor não se agradou e ainda hoje não se agrada de nossos feitos em prol da remediação do pecado, pois ainda que pudéssemos coser os mais belos e perfeitos aventais que um ser humano pudesse confeccionar, ainda assim, diante do Senhor, não estaríamos completamente e decentemente cobertos, afinal, uma vez tendo pecado e transgredido o mandamento do Artífice, somente Ele é quem pode nos libertar da malignidade e vileza em que nos encontramos, de modo que toda obra de nossas mãos nada mais são do que vis cavilações e subterfúgios inúteis com finalidade de nos justificar ante ao Senhor.
Após a visualização de sua nudez e a tentativa frustrada de consertarem sua exposição diante de Deus, "ouviram a voz do SENHOR Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do SENHOR Deus, entre as árvores do jardim" (Gn 3.8). Agora já não mais havia paz entre o casal e o seu criador. O Senhor que estava junto deles em momentos anteriores à queda [2], agora é visto como um estranho, um intruso, alguém que não é bem-vindo, como se de Criador e Sustentador, passasse a ser usurpador e salteador. O modo de viver anterior a queda era belo, formoso e singelo, ao passo que após a queda, já não mais observavam o Senhor de forma gloriosa - Ele passou-lhes a ser um ente estranho, alguém cuja presença já não era adorável, mas tão somente temível por causa de seus pecados e afrontas mortais.
Observemos como o pecado desgraçou a inocência da consciência. Se anteriormente podiam livremente andar nus diante do Eterno - representando assim [também] a contínua dependência que tinham do Senhor e a insuficiência em si mesmos -, agora, apenas o ouvir da voz do Senhor em meio à criação já era motivo para alarme, desconfiança e medo: "E chamou o SENHOR Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me" (Gn 3.9-10). Assim como as crianças se escondem de seus pais após o desobedecerem conscientemente, também nos parece que tal atitude se deu com Adão e Eva. A voz do Senhor havia deixado de lhes ser graciosa, já não tinham mais prazer na beleza da santidade (Sl 96.9) do Alto; pelo contrário, sequer conseguiam entender quem era o Senhor.
A ênfase que Moisés destaca também é importante, pois não apenas Adão temeu ao Senhor, mas também tentou se refugiar em meio a natureza. Contudo, notemos que atitude errônea foi essa e completamente desprovida de sensibilidade divina, afinal, como Jó afirmou - "Porque ele vê as extremidades da terra; e vê tudo o que há debaixo dos céus" (Jó 28.24) -, de que forma seria possível ao homem o esconder-se na própria criação do Senhor soberano? O esconder-se do Senhor nos revela também a vontade natural do homem - o tentar afastar-se para o mais distante que conseguir da presença Eterna. Porém, o Senhor bem sabia para onde Adão havia ido e o que havia feito. Como que nunca pergunta soberanamente cônscia da resposta, o Senhor diz: "Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?" (Gn 3.11). Deus não desejava saber a resposta, pois uma vez que reside nele toda soberania e controle da criação, não havia - e não há - coisa alguma que lhe fugisse à vista. A pergunta, portanto, visava apenas a incriminação do homem e sua insuficiência em responder.
Aqui, então, começamos a notar outro ponto crítico da Queda: o não reconhecer dos próprios erros (Sl 19.12) e passar a culpa adiante. "Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi" (Gn 3.12). Ao contrário do que lhe havia sido incumbido, por ocasião do pecado, Adão não compreende o seu papel na Queda, não compreende que ele também havia caído e maculado a glória do Senhor em seu ser, não percebera em quão lamentável situação se encontrava - preferia se achar digno de alguma clemência e por isso apontou o culpado: "A mulher que me deste por companheira". Da mesma forma se passa com a mulher: "E disse o SENHOR Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi" (Gn 3.13). Não bastasse o homem haver negligenciado seu dever, agora a mulher também se escusa da responsabilidade e aponta a razão de sua queda: "[a] serpente me enganou". Mas, diferente do homem e da mulher, à serpente não foi dada autorização para falar - a ela restava apenas a condenação.
No entanto, que não nos passe despercebido o seguinte detalhe: embora tenham tentado se esquivar da responsabilidade, tinham consciência de que eram transgressores e pecadores, pois ambos disseram "e comi" (vs. 12-13). Adão e Eva sabiam que haviam violado a ordenança do Senhor e que estavam aliados à serpente, eram cientes de que foram descumpridores do pacto de obras, entretanto, ainda assim buscaram apontar um culpado, como que não aceitando o fato de haverem falhado. Fazemos então a brevíssima reflexão: não é isso que ainda hoje costumamos fazer? Não é dessa exata maneira que muitas vezes se dá o nosso proceder? Visualizamos a chance de pecar, pecamos, passamos o pecado adiante, mas dizemos resolutamente: "A culpa não e minha! A tentação foi maior que do eu podia suportar!". Quando assim procedemos, violamos o ensinamento divino que afirma: "o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar" (Gn 4.7).
Importa-nos, então, observarmos a primeira condenação que o Senhor profere: "Então o SENHOR Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida" (Gn 3.14). Até o presente momento da narrativa não havia sido proclamada nenhuma maldição da parte do Senhor. Apesar de já terem cometido pecado, o Eterno ainda não havia lhes castigado diretamente e proferido as duras e penosas consequências da Queda.
Ao contrário do que pode nos parecer justo, o Senhor não imputada sobre Adão ou Eva a maldição primeira, mas sim castiga o estopim do pecado, a saber, a serpente perversa. O castigo recaiu sobre a serpente como animal, mas também como representante do Diabo que era (Ap 20.2). Porém, não somente o animal rastejador foi atingido pelo decreto irado do Senhor, e sim todo o restante dos animais. Se anteriormente o homem e mulher deveriam apenas se alimentar das árvores frutíferas (Gn 2.16), após a queda "Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde" (Gn 9.3) - o ato de se matar a criação (os animais, seres com vida) é fruto do pecado. Agora, já não mais havia paz entre os animais e os seres humanos; se iniciava uma cadeia alimentar onde o mais forte venceria o mais fraco - não haveria piedade ou misericórdia sobre a face da terra.
O Senhor prossegue: "E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3.15). [3] Apesar de anteriormente a serpente haver prometido que a mulher seria como Deus - e consequentemente se igualaria ao Seu ser -, nada disso aconteceu; na verdade, não somente ficou sem a promessa da serpente, mas também passou a ter a própria serpente como um inimigo diário. A Bíblia não nos releva se a ocasião da queda foi a primeira vez em que a serpente havia se aparecido aos seres humanos, porém, independente disso, antes da queda a serpente não feria o calcanhar da mulher. Portanto, o Senhor sentencia que uma vez embrenhados em meio ao pecado, constantemente a serpente castigaria a criação de Deus, de modo que se não houvesse um libertador (louvado seja o Senhor!), o fim da vida humana já estaria decretado: a morte e tormento eterno - a picada mortífera da víbora.
Tal qual como um juiz togado, o Senhor continua sua sentença condenatória: "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará" (Gn 3.16). Ainda que muitos tentem desvirtuar o ensino bíblico e sejam como vozes da própria serpente enganadora, a firme, reta e sempre soberana Palavra do Senhor nos afirma que, se anteriormente à queda a mulher era uma ajudadora idônea (Gn 2.18), agora sua idoneidade havia findado, lhe restando somente dores, tanto na concepção dos filhos, como no obedecer ao marido. Desse ponto em diante, a mulher já não está mais obrigada por amor à obediência marital, e sim por imposição, isto é, deve obedecer ao marido, sendo isso agradável ou não - "ele te dominará". [4]
Agora, o Senhor chama o terceiro réu e profere: "E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida" (Gn 3.17). A primeira parte da condenação diz respeito a um gravíssimo erro que Adão havia cometido: "Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher". Adão, como líder e responsável por sua casa, não deveria dar ouvidos a sua mulher. [5] Lhe havia sido dado o dever de lavrar, cuidar da terra e, por implicação, obedecer somente ao Senhor e seus desígnios. [6] A segunda parte da condenação é com respeito a sua atitude para com o Criador: "e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela". Em lugar da obediência e reverência devida, Adão resolveu ir além e mover as linhas limítrofes estabelecidas pelo Senhor. Mesmo sendo cônscio de seu dever de não comer da árvore proibida, ultrajou o mandamento do Senhor e desejou ser dono de suas próprias escolhas. Porém, há ainda uma terceira parte: "maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida".
Ainda que em alguns milhares de anos posteriores a queda, o apóstolo ainda expressa essa realidade: "Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora" (Rm 8.22). Por causa do pecado de Adão, maldita se tornou toda a terra - tudo, absolutamente todas as coisas seriam obtidas "com dor" e dificuldades. Da maravilhosa presença do Senhor, do mais belo Jardim que se podia encontrar e do sustento diário provido bondosamente pelo Senhor (pois a terra dava seu fruto no tempo certo, as sementes germinavam sem falta, as águas fluíam no curso correto), o homem passa a ter sobre si a dor, quem sabe, de um modo geral, seja a mais terrível e temida sensação que alguém pode experimentar, tipificando assim a grandiosa malignidade em que haviam incorrido. Entretanto, para que o homem não pensasse que porventura apenas o sustento lhe seria dificultoso, o Senhor ainda lhe diz: "Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás" (Gn 3.18-19). A terra já não seria frutífera como outrora - haveriam pragas por toda ela.
Observemos mais um detalhe salutar: anteriormente havia sido dito: "E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida... E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente" (Gn 2.9). A provisão para o homem vinha diretamente da própria natureza criada pelo Senhor. As árvores já estavam postas e davam toda sorte de frutos, de modo que o homem e a mulher retiravam seu sustento diretamente da criação providencial. Parece-nos que as Escrituras estão a nos informar sobre que Adão não necessitaria incrementar elementos e benfeitorias humanas a terra, pois a própria natureza do Senhor lhe proveria todos os nutrientes e formas adequadas de sustenta. Todavia, agora o veredito é outro: "e comerás a erva do campo". Tal qual o animal que tem de se dobrar ao chão para obter alimento e tem de se esforçar grandemente para achar comida, assim também estaria o homem diante da terra. Já não mais apanharia das frutas gloriosas dadas pelo Senhor, pois teria de comer da erva do campo. E não bastasse toda essa infelicidade e terrível maldição, como vimos, ainda teria de comer da erva do campo em meio a "Espinhos, e cardos" - No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra. A razão para toda essa maldição era clara: "porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás". Para que o homem não se gloriasse perante o Senhor e não aviltasse a divindade outra vez, o Senhor lhe sentencia que assim como do pó havia sido formado, agora também ao pó voltaria e veria a morte - "Porque eu sei que me levarás à morte e à casa do ajuntamento determinada a todos os viventes" (Jó 30.23).
Por fim, lemos: "E chamou Adão o nome de sua mulher Eva; porquanto era a mãe de todos os viventes" (Gn 3.20). Moisés não nos fornece maiores explicações do porquê desse ato de Adão, mas, conforme pensaram certos homens piedosos [7], pode-se conjecturar que por o nome de Adão significar "[da] terra vermelha" e Eva ter o sentido de "vida", por uma perspectiva futura, talvez Adão tenha dado tal nome a sua esposa por haver recebido a sentença da morte e então cria que apesar dela (a morte), poderia em Eva encontrar a vida para sua posterioridade - filhos. Já em uma perspectiva pretérita, pode Adão ter crido que por a Eva ter sido dada a promessa de que sua posterioridade haveria de esmagar a cabeça da serpente (Gn 3.15), tenha ele dado tal nome devido à semente que dela descenderia, significando que a tomava como parte integrante de seu ser e que era esperançoso de que tal promessa se cumprisse. De qualquer modo, nos parece que como num ato de consolação, dá a sua mulher um nome que denota "vida", tendo, então, certo alento próprio e/ou matrimonial, apesar da sentença de morte já estar sobre si.
Para a tristeza, choro e lamentação de todo ser vivente, a maldição do Senhor estava findada - homem e mulher tiveram a imagem e semelhança de Deus manchada em seus seres e, desse ponto diante, não fosse a misericórdia e graça do Alto, estariam fadados à ruína eterna.
Notas:
[1] Veremos esse ponto mais detidamente quando comentarmos sobre a modéstia e decência no se vestir.
[2] A narrativa bíblica nos parece fornecer a impressão de que houve, durante algo tempo (que não podemos precisar a quantidade), a perfeição no Jardim - daí o relato da Queda ser posterior a esse tempo e não imediatamente a colocação de ambos no Éden.
[3] Posteriormente analisaremos como Jesus Cristo está inserido nesse contexto e versículo.
[4] Não se deve interpretar equivocadamente tal maldição. Para tal entendimento de acordo com a Palavra, leia novamente o estudo 7 e 8.
[5] O Senhor não condena Adão porque simplesmente ouviu sua mulher, afinal, certamente que eles conversavam e, como ajudadora que era, Eva certamente tinha papel deveras importante na relação, mas sim o condena em face do pecado de dar ouvidos à mulher, em vez de atentar para o Senhor.
[6] Para uma explanação mais detalhada sobre esse fato, ver o capítulo 11 do livro "Vivendo Para a Glória de Deus, Uma Introdução à Fé Reformada", Ed. FIEL - do autor Dr. Joel R. Beeke.
[7] Vide comentários de João Calvino e Matthew Henry.
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