*A presente carta é de gênero fictício, embora contenha situações da vida real.
Olá, Ritalavasaia.
Permita-me iniciar dizendo que a primeira vez que ouvi seu nome, o achei um tanto quanto diferente. Lembro-me de ouvir você explicando o motivo dele: certa vez sua mãe estava falando em "línguas" (ou julgava assim fazer) e "profetizou" que a primeira palavra que saísse de sua boca, seria o nome da próxima filha que o Senhor daria. Confesso: uma história um tanto quanto interessante.
Bem, na verdade, não estou escrevendo esta carta para falar sobre seu nome, mas sim acerca de algo que você realiza: o chamado falar em "línguas". Ainda é recente em minha memória aquele dia em que você me encontrou no terminal de ônibus urbano e, logo em seguida, você se deparou com outra mulher que começou a profetizar e falar em línguas estranhas sobre você - se me recordo corretamente, era sobre alguma viajem, bênçãos e outras coisas mais de sua vida. Lembro-me também que aquela mulher ficou um tempo considerável repetindo exatamente as mesmas palavras, mas toda vez tinha um significado diferente - segundo o que ela mesma "interpretava".
Todavia, acontece que esta prática de falar em "línguas", não é bíblica. Sim, eu sei que você pensa que é e que em sua igreja muitas pessoas alegam ter este "dom" de Deus. Mas, deixe-me esclarecer algumas coisas:
Talvez tenham lhe ensinado que o "batismo com o Espírito Santo" seja uma segunda bênção que o crente recebe, de modo que quando ocorre, ele fica verdadeiramente capacitado para a obra do Reino - o sinal desta bênção, então, seria o falar em "línguas" estranhas/angelicais. Porém, preciso ser sincero com você e dizer que isso não é verdade. O que a Bíblia retrata no livro de Atos dos Apóstolos, não é uma segunda bênção, e sim o cumprimento de uma promessa de Jesus, que havia dito que após Sua ascensão aos céus, não deixaria os Seus discípulos sozinhos, mas enviaria o Consolador, a saber, o Espírito Santo (Jo 16.7). Assim sendo, quando ouve o derramamento do Espírito Santo registrado no capítulo 2 de Atos, se fazia concreta a promessa de Cristo. Note, porém, que as línguas lá faladas, não eram "línguas estranhas", mas sim humanas: "E em Jerusalém estavam habitando judeus, homens religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu... Como, pois, os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos? Partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia, E Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, Cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus" (Atos 2.5, 8-11 - grifo meu).
Poder ser que você ainda continue persuadida de que o que digo não seja verdade, pois você entende que após o evento que se deu na festa do Pentecostes (observe é que a festa se chamava Pentecostes, e não a bênção - portanto, o termo "cristão pentecostal", é um tanto quanto equivocado), outros discípulos receberem o Espírito Santo pela imposição de mãos (At 9.17; 19.6). Ocorre que este fato é facilmente respondido pela ordem cronológica dos acontecimentos. Em outras palavras, uma vez que o Espírito Santo ainda não havia sido derramado em Sua plenitude, mas alguns já haviam sido batizados antes d'Ele ser enviado a todos os crentes, estes (os batizados antes da vinda) precisavam recebê-lO. Aqui se encontra o motivo porque alguns receberam o chamado "batismo do Espírito Santo" após o batismo das águas: porque na época do seu batismo, ainda o Espírito Santo não havia sido enviado para todos os cristãos. Por consequência lógica, os que iam sendo convertidos e batizados após a vinda do Espírito, no próprio batismo já recebiam-O, não havendo o porquê de esperarem uma segunda bênção,
Sei, irmã Ritalavasaia, que naquela vez que estávamos conversando sobre este assunto, você citou a questão de Paulo dizer: "Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine" (1Co 13.1), e também: "O que fala em língua desconhecida edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja" (1Co 14.4). Deixe-me, então, tecer breves comentários sobre estas duas passagens.
Realmente não sei como andam seus estudos teológicos e quanto tempo você tem dedicado semanalmente ao estudo sério das Escrituras (também não sei se seu marido tem feito o "dever de casa" e lhe auxiliado na compreensão da Palavra do Altíssimo). De qualquer maneira, e me perdoe a sinceridade "brusca", mas apelar para estes dois versículos, como que buscando neles um aval positivo para esta prática de "falar em línguas", é ser mal entendedor e estudioso da Bíblia.
Quando Paulo fala em línguas "dos anjos", talvez você não saiba ou omitiram a verdade em sua igreja, mas o apóstolo está se utilizando de uma hipérbole - um recurso literário que fala um absurdo, a fim de esclarecer e dar maior ênfase ao assunto. É como se ele dissesse: "ainda que eu subisse o monte Everest 10 vezes num só dia, se não tivesse amor...". Sob hipótese alguma, Paulo poderia falar literalmente a língua dos anjos, pois de imediato surgiriam três problemas: 1. de quais anjos ele estava falando - dos santos ou dos caídos? 2. Como um homem pecador poderia ter em seus lábios o santo palavreado dos anjos que nunca pecam, isto é, como uma linguagem absolutamente pura iria conviver com um coração inclinado para o mal, ainda que regenerado? 3. Aliás, se tal coisa fosse possível e supostamente alguém pudesse falar em tal idioma, como é que há tantas divergências de interpretações sobre a mesma "frase" que alguém profere? Caso ainda esteja convicta desta ideia, sugiro que grave você mesma falando em línguas e, depois, enviarei esta cópia para diferentes pessoas que dizem ter o "dom de interpretação" - se for de Deus, tenho certeza que todas as interpretações serão cem por cento idênticas, pois o próprio Paulo afirma no capítulo seguinte: "Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos" (1Co 14.33).
Com relação a quem fala em "línguas" e "edifica-se a si mesmo", se percebe outro absurdo pregado em muitos púlpitos. Basta se dedicar algum tempo a esta passagem e se irá perceber que edificar a si mesmo, na linguagem e contexto de Paulo, não faz qualquer sentido, exceto se compreendido como sendo, também, uma hipérbole ou ironia. Se tal fato fizesse sentido, bastaria que quem fala em línguas, se trancasse em seu quarto e durante horas a fio falasse diretamente com o Senhor - ao sair do aposento, penso que seu rosto brilharia como o de Moisés que falou com Deus (Êx 34.30). Destarte, o que Paulo está dizendo é em sentido irônico, pois veja que ele está falando que todo dom é dado para a edificação da igreja de Deus: "Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja" (1Co 14.12). Logo, não poderia afirmar o oposto, isto é, que alguém poderia ter um dom que tão somente edificasse a si próprio.
Portanto, irmã Ritalavasaia, ore ao Senhor para que Ele lhe conceda entendimento e, por fim, cesse com esta prática. Não dê ouvidos àquelas mulheres amigas suas e a alguns homens amigos seus e de seu marido, que dizem que você precisa falar em "línguas", afinal, como lemos abundantemente nas Escrituras, o que o Senhor deseja não são atos externos, mas sim internos; não sacrifícios ritualísticos, mas conhecimento e misericórdia (Os 6.6); não o rasgar das vestes, mas sim o do coração (Joel 2.13); não a limpeza de objetos, mas a do homem interior (Mt 23.25) - todas as estas coisas, mostrando e ensinando-nos que o verdadeiro cristão não é o que fala em "línguas" e fica num balbuciar sem sentido diante da igreja, mas sim aquele que se dedica a compreender e praticar o ensino genuíno e puro de Deus.
Recomendo que da próxima vez que se sentir "tentada" a falar em "línguas", lembre-se de que isso não agrada ao Senhor, nunca foi uma prática da igreja histórica (procure ler e estudar sobre a história da Igreja) e não é possível ser defendido biblicamente.
Que o Senhor seja contigo e te liberte do misticismo em que estás inserida.
Em Cristo e para a progressão de Seu reino,
Filipe Luiz C. Machado.
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