Só nos eleitos é a fé real e eficaz; nos réprobos,
ela é apenas aparente e ineficaz - por João Calvino
ela é apenas aparente e ineficaz - por João Calvino
Além disso, ainda que a fé seja o conhecimento da divina benevolência para conosco e a segura convicção de sua verdade, contudo não é de admirar que nos chamados justos, temporariamente, se desvaneça o senso do amor divino, o qual, embora seja afim à fé, entretanto difere muito dela. Declaro que a vontade de Deus é imutável e sua verdade é sempre consistente com a mesma. Contudo nego que os réprobos avancem até o ponto de penetrar essa secreta revelação que a Escritura reivindica só para os eleitos. Nego, porém, que eles ou apreendam a vontade de Deus, como é imutável, ou com real constância lhe abracem a verdade; por isso é que se detêm em um sentimento evanescente, como uma árvore, plantada não bastante funda para produzir raízes vivas, seca-se no decurso do tempo, ainda que por alguns anos simule não só flores e folhas, mas até mesmo frutos.
Enfim, assim como pela queda do primeiro homem pôde-se apagar de sua mente e de sua alma a imagem de Deus, assim também não é de admirar se a alguns réprobos Deus ilumine com os raios de sua graça, os quais, mais tarde, permite que se extingam. Tampouco coisa alguma impede que Deus a uns tinja levemente de conhecimento de seu evangelho, a outros infunda profundamente. Isto, contudo, devese manter: por mais exígua e débil que a fé seja nos eleitos, entretanto, uma vez que o Espírito de Deus lhes é o seguro penhor e selo de sua adoção [Ef 1.14], jamais se pode apagar de seus corações o que ele neles gravou. Quanto à iluminação dos réprobos, finalmente se dissipa e perece, sem que possamos dizer por isso que o Espírito engana a alguém, pelo fato de que não vivifica a semente que jaz em seu coração, de sorte que permaneça sempre incorruptível como nos eleitos.
Portanto, vou mais longe: uma vez que do ensino da Escritura e da experiência diária se faça patente que os réprobos são, por vezes, tocados pelo senso da graça divina, necessariamente se lhes desperta no coração certo desejo de amor mútuo. Assim, por certo tempo vicejou em Saul um afeto piedoso para que amasse a Deus, de quem, reconhecendo ser tratado paternalmente, era tomado de algum dulçor de sua bondade. Mas, uma vez que nos réprobos não se arraiga profundamente a convicção do paterno amor de Deus, não o amam plenamente como filhos; pelo contrário, são conduzidos por certa disposição mercenária. Ora, só a Cristo foi dado esse Espírito de amor, com esta condição: que o instile em seus membros; na verdade esta afirmação de Paulo não se estende para além dos eleitos: “Porquanto o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” [Rm 5.5]; isto é, esse amor que gera aquela confiança de invocação que abordei acima [Gl 4.6].
Assim vemos, por outro lado, que Deus se ira paradoxalmente com seus filhos a quem não deixa de amar; não que em si os deteste, mas porque os quer aturdir com o senso de sua ira, para que lhes humilhe a soberba da carne, sacuda-lhes o torpor e os provoque ao arrependimento. E assim concebem-no ao mesmo tempo não só irado contra eles, ou contra seus pecados, mas também propício para com eles; pois eles não fingidamente suplicam que lhes seja desviada sua ira, enquanto nele se refugiam com serena confiança. Com estas considerações, de fato fica evidente que alguns não estão a simular fé, os quais, no entanto, carecem da verdadeira fé. Ao contrário, enquanto são levados de súbito impulso de zelo, enganam-se a si próprios com uma opinião falsa. Nem há dúvida de que deles se assenhoreie a displicência, de sorte que não examinam devidamente o próprio coração, como seria de esperar. É provável que tais tenham sido aqueles em quem, conforme o testifica João, “Nem mesmo Jesus confiava neles, porque conhecia a todos; e não necessitava de que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem” [Jo 2.24, 25].
Pois, se muitos não decaíssem da fé comum (chamo-a comum pela grande semelhança e afinidade da fé temporária com a fé viva e permanente), Cristo não teria dito aos discípulos: “Se permanecerdes em minha palavra, verdadeiramente sois meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres” [Jo 8.31, 32]. Pois estava dirigindo a palavra àqueles que haviam abraçado seu ensino e os exorta ao progresso da fé, para que não viessem, por seu torpor, a extinguir a luz que lhes fora dada. Por isso Paulo reivindica a fé real exclusivamente para os eleitos [Tt 1.1], significando que muitos fenecem, porque não têm exibido a raiz viva. Assim também fala Cristo em Mateus [15.13]: “Toda árvore que meu Pai não plantou será desarraigada.”
Em outros, sua zombaria é ainda mais crassa, os quais não se acanham de querer enganar a Deus e aos homens. Contra essa espécie de homens, que profanam impiamente a fé com falaz pretexto, Tiago investe resoluto [Tg 2.14-26]. Tampouco Paulo requereria dos filhos de Deus “uma fé não fingida” [1Tm 1.5], a não ser pelo fato de que muitos arrogam para si ousadamente o que não têm, e com vã aparência enganam ou a outros, ou por vezes a si próprios. E assim ele compara a boa consciência a uma arca em que se guarda a fé, porquanto muitos, ao desviar-se daquela, tornaram-se náufragos no tocante a esta [1Tm 1.19].
Em: Institutas da Religião Cristã, 3,II,xii, Edição Clássica, Editora Cultura Cristã
Fonte: Blog dos Eleitos
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